Mariante, distrito de Venâncio Aires em área às margens do Rio Taquari, resistiu a inundações históricas, mas sucumbiu com as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio, quando teve toda a infraestrutura e quase todas as 618 casas atingidas pela inundação. Sobreviventes vivem a incerteza sobre destino.
Por Artur Stabile e Fábio Tito
Morando a 4 quilômetros do rio mais próximo, Osmar Gomes Pereira, de 71 anos, desce as escadas da casa do filho para entrar no barco amarelo que tem há mais de quatro décadas para fugir das enchentes.
Remando, ele passa pelas pilastras que elevam o imóvel a três metros do chão para chegar à Rodovia RSC-287, que corta o município de Venâncio Aires, e encontrar o g1 na manhã de terça-feira (14).
Não é possível ir a pé. As águas do Rio Taquari ainda alagam o percurso entre a casa e a rodovia, rasgada por pelo fluxo da água. Osmar diz que, de tanto ouvir falar, tinha curiosidade de saber como foi a cheia de 1941, a pior da história do Rio Grande do Sul até as enchentes de 2024. No início de maio deste ano, viu algo pior. O distrito de Mariante e os arredores, onde vive o idoso, foram arrastados pelo Taquari.
No dia 1º, Osmar, a mulher, Adélia Gonçalves dos Santos, e o filho, Adriano dos Santos Pereira, viram a água subir e quase invadir a casa.
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Permaneceram, por insistência do filho, até a madrugada do dia seguinte. Por volta das 4h, com a água na altura do peito, decidiram fugir. Por duas horas, remaram cerca de 1,5 km até encontrar um pedaço de terra seguro.
“Nós pegamos o barco ali naquela escada. Ela [esposa] subiu com cinco cachorrinhos desses pequenininhos juntos, e ali fomos embora.”
Vizinhos de Osmar, Délcio e Cleci Bergnethal, de 77 e 72 anos, também não queriam deixar a casa. “Daqui eu não saio”, disse Délcio, segundo o filho, Paulo Dario Bergnethal, de 53 anos, que morava ao lado.
Nas duas grandes cheias que atingiram a região recentemente – em setembro e novembro de 2023 –, o casal escapou subindo para o segundo andar.
“Eu estive lá de noite, umas 21h e pouco [do dia 1º]. Não queriam sair, eles achavam que ia dar uma enchente baixa […]. Não tinha perigo”, conta Paulo.
O casal foi para o segundo andar novamente – a mulher, cadeirante, subiu carregada pelo filho. Dias depois, em 3 de maio, Délcio e Cleici foram encontrados sem vida no andar térreo.
Em 2022, Mariante tinha 1,5 mil habitantes em 618 lares, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). A maioria dos cidadãos vivia de agropecuária, plantio de fumo, atividades extrativistas (como o de madeira) e plantações para consumo próprio.
As inundações deste mês varreram o local. Os 1,5 mil habitantes tiveram de deixar suas casas – quase 500 delas, ou 8 em cada 10, foram danificadas pelas chuvas, segundo a Prefeitura de Venâncio Aires.
A única escola pública e o único posto de saúde foram destruídos, assim como as estradas. Até mesmo o que restava de uma casa da família dos fundadores, construída por volta de 1860, que havia resistido a enchentes anteriores, foi completamente varrida.
Segundo estudos da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS), o distrito de Mariante é um dos locais habitados do estado que foram mais severamente atingidos pelas inundações de 2024.
Estimativas de profundidade indicam que o nível de água lá superou grande parte do medido em outras regiões.
O quanto é uma incógnita – o medidor que havia na região foi arrancado e, por isso, não há medições a partir do dia 30 –, mas deve ficar em torno de 14 metros, segundo pesquisadores da instituição.
A localização em um vale e a falta de mata ciliar tornam a vila mais propensa às cheias, aponta Humberto Barbosa, professor do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites, da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), ao analisar as cenas do distrito antes e depois da tragédia.
Mariante é um distrito de Venâncio Aires onde viviam 1,5 mil pessoas até as enchentes de 2024
‘A gente brincava nas enchentes’
A colonização portuguesa que resultou na criação do Distrito de Mariante começou entre 1760 a 1800, com a chegada de açorianos à região.
A vila surgiu às margens do Taquari e servia como entreposto para barcos mercantis vindos do interior com destino a Porto Alegre.
O nome é uma homenagem a Antônio Joaquim da Silva Mariante, que arrendou terras na região no século 19. Quando Venâncio Aires foi fundada, em 1891, Mariante virou um distrito.
Os moradores de Mariante e do entorno estavam acostumados a enfrentar cheias do Taquari – a casa elevada e o barco da família de Osmar são um exemplo disso.
«A gente brincava nas enchentes, caminhava, corria, às vezes até tomava banho. Não era tão suja que nem agora. A gente se divertia. Só que isso começou a piorar”, relembra a doméstica Andreia da Silva Ribeiro.
“Era enchente calma, tranquila. Ninguém perdia uma galinha, salvava-se tudo, os bens, móveis, não tinha problema nenhum”, recorda Nilda Maria Rosa Schwing Bergnethal, de 70 anos, nascida em Mariante, viúva desde 2016.
“A gente sempre teve muita certeza da altura da água”, relembra Mayara Mariante, de 29 anos, descendente dos fundadores. “E tivemos uma casa muito preparada para enchente por conta de já saber desde sempre que vinha água onde a gente morava.”
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Natureza ‘mudou a regra’
Em setembro de 2013, o Serviço Geológico Brasileiro (SGB) – que classifica a vila como área de alto risco para inundação – recomendou a restauração da vegetação ciliar ao longo das margens do Taquari.
Para Fernando Meirelles, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do estado (UFRGS), as enchentes de setembro e novembro de 2023 podem ter contribuído para tornar a vila ainda mais vulnerável ao dilúvio de 2024.
“Mariante tem um banco de areia enorme que talvez possa explicar essa cheia maior. Todo aquele solo que desceu com a chuva pode ter parado em Mariante. E, aí, pode ser que a curva do rio tenha segurado a terra ali”, cogita.
E por que a vila não foi abandonada antes?
“Agora, este risco estatístico não é mais claro, ou seja, mudou a série de dados, mudou a realidade registrada. No meio do caminho, no meio do jogo, mudou a regra. E quem mudou foi a natureza respondendo a todo o processo de mudança climática.”
‘A gente tinha e, em questão de segundos, não tinha mais nada’
Passadas duas semanas, os moradores ainda não voltaram a Mariante. Muitos sequer sabem o que sobrou de suas casas e terrenos.
A força das águas levou imóveis de madeira e transformou feitos de alvenaria em entulho. O centro do distrito, onde ficam o mercado e outros estabelecimentos comerciais, foi coberto por água (veja no vídeo acima).
A maioria dos moradores, segundo a Prefeitura de Venâncio Aires, foi para a casa de parentes e amigos. Cerca de 250 estão em três abrigos criados pela administração municipal.
Um deles, com 100 sobreviventes, foi montado no Ginásio do Mangueirão, um grande espaço para festas e esportes. São 36 homens, 31 mulheres, 17 crianças, 12 idosos e um bebê de 8 meses.
“Hoje o Mariante não existe, está varrido. As casas foram todas água abaixo. E as que ficaram em pé, em todas elas faltam um pedaço, estão quebradas, estão caindo. Para morar… Olha, provavelmente nenhuma [sobrou]”, diz, com lágrimas nos olhos, Ivo Noll, de 65 anos, conhecido como Sorriso.
“Não é fácil. Tenho que falar por todos. Tem todas essas famílias, tem muita criança. A gente sente. Quando a gente começa a lembrar, não é fácil. A gente tinha e, em questão de segundos, não tinha mais nada.”
Com doações, o abrigo tem conseguido fornecer comida, roupas, calçados, colchões, cobertores e itens de higiene a todos, que compartilham também o temor pelo futuro.
“[Não] tenho nem ideia do que vai ser de nós. É complicado. Dinheiro para construir outra casa, não tem. Serviço, não tem”, diz Jurema Pereira da Silva, de 47 anos, que vive do trabalho no campo e de faxinas em casas da região.
Onde recomeçar?
Prefeito de Mariante, Jarbas da Rosa (PDT) acredita que metade dos moradores da Vila Mariante e de outras áreas no entorno – cerca de 4,8 mil pessoas – não vão voltar para a região.
A expectativa, porém, é que Mariante volte a ser ocupada.
“A vila Mariante vai continuar. Mas ela vai ter uma nova infraestrutura, uma nova dinâmica. Nós temos uma das maiores empresas do município, que está instalada em Vila Mariante, que é um frigorífico, e há planejamento da empresa de que em 30 dias se restabeleça, faça as reformas adequadas e que volte a operar. Então, vila Mariante não acabou.”
A Prefeitura de Venâncio Aires pretende construir cerca de 500 imóveis para atender quem ficou desabrigado, e busca apoio dos governos federal e estadual.
Parte dos imóveis deve ser erguida no terreno de uma antiga cadeia do município, na estrada que liga o centro da cidade à vila, a cerca de 14 km do centro da vila – a legislação brasileira impede a construção de imóveis com dinheiro público em áreas de risco.
«A prefeitura não vai proibir [a construção]», diz o prefeito, sobre iniciativas que pretendam construir um pouco mais próximo do rio. «Tinha muitas casas de 50, 100 anos construídas, que estavam a um, dois metros da beira do rio (…) isso ninguém vai construir.»
Os moradores de Mariante que estão em abrigos sonham com uma casa e voltar à vida com certa normalidade. Não como ela era antes de 1º de maio. Essa vida se foi. Eles se dividem entre céticos e otimistas.
Nilda Maria Rosa Schwing Bergnethal prevê um futuro mais difícil para o lugar, que enfrentou secas severas em 2019 e nos anos seguintes. “Às vezes,eu penso: ’será que a gente pediu tanto a chuva que ela veio agora com tudo, desse jeito, de uma vez só?’», diz. «A natureza, eu não sei o que está acontecendo. Essas mudanças climáticas…”
A calçadista Alexandra quer voltar para Mariante para reviver os momentos felizes que carrega, em especial com os animais. «Não é um lugar muito desenvolvido, mas é calmo e acolhedor», conta. «Todo mundo queria um cantinho para si. Fomos tirados de lá como se… A gente tinha bastante esperança de voltar, mas infelizmente o que aconteceu deixou a maioria do pessoal sem ter para onde ir, onde recomeçar.»
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Eles querem recomeçar a vida. E recomeçar Mariante.Fonte: G1 Colaboraram: Artur Nicoceli, Gabriel Croquer, Gustavo Petró, Marina Pinhoni, Paula Paiva Paulo; Vídeos: Iolanda Paz, Patrícia Cunha, Mariana Mendicelli; Infografia, design e desenvolvimento: Barbara Miranda, Bruna Azevedo, Kayan Albertin, Luisa Rivas, Vitória Coelho, Guilherme Gomes